terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A MADRUGADA NEGRA E O NEGRO NA MADRUGADA



Depois de um longo dia de reuniões políticas, estava eu, com a habitual insônia, varando a madrugada acordado, refletindo sobre a vida e curtindo um Tupac. "Me Against the World". "Eu contra o mundo". A conclusão de uma das mais expressivas e, claro, contraditória voz do gueto norte americano. Fiquei ao longo da noite pensando qual foi o preto ou a preta, politizado ou não, que em momentos de vacilações nunca se perguntou: será mesmo? Sou eu contra todo mundo?

Os últimos séculos tem nos reservado dor, sangue e miséria. Não tivemos um segundo de paz. Do chicote ao cacete e ao esculacho diário dos verme. Da Senzala ao barraco sem luz, água e esgoto. Isso na melhor das hipóteses, quando não é, novamente, uma cela lotado com outros 50, todos pretos, é claro. 
O trabalho é pesado, o salário é osso. Construímos toda a riqueza, e a pobreza nos é reservada. Se não tem trampo então se vira. Pega os bagulho e vai vender no Trem. "Trident, um real!". Mas fica esperto se não o rapa leva e ainda toma uns tapas. Décimo terceiro, direitos trabalhistas...não consta no dicionário da favela.

Sai governo, entra governo, cria programa social, muda programa social e nada muda. Sim, alguma coisa muda, mas na essência, nada muda. Continuamos no topo da lista de vítimas da violência, em geral por parte do próprio Estado. Nossa juventude está sendo exterminada pela polícia. Me dei conta, então, que vou caminhando para os 30, contrariando as estatísticas. Mas muitos se vão, são assassinados...e cada vez é mais. Não preciso apresentar números para impressionar, basta abrir o jornal de hoje e tenho certeza que teremos um exemplo.

Somos só força de trabalho e objeto para o deleite dos ricos. As mulheres negras foram transformadas em objeto sexual para o deleite da patronal racista e dos lucros dos podres canais de televisão. A opressão se alastra nos meios de comunicação. E se for mulher, negra e lésbica então? Foi então que, desafiando a minha limitada e conservadora formação moral, fiquei um bom tempo imaginando como seria a vida de uma travesti negra? E de opressão em opressão, os senhores do capital nos fazem sentir vergonha da nossa pele, nos proíbem de amar, nos transformam em objetos e ainda enchem os bolsos aproveitando-se de nossa divisão. 

Mas quando não temos emprego, quando não temos casa, quando não temos mais nada, quando nos é negado tudo e parece que é o limite do sofrimento a burguesia branca nos surpreende: prende um morador em situação de rua condenado-o a cinco anos por "participar" dos protestos da jornada de junho portando um perigoso pinho-sol! Não me importa saber quantas páginas têm os autos ou os artigos do código penal, o motivo já sabemos, a sua cor preta. Preto em protesto? É o fim do mundo. Por coincidência ele não só compartilha comigo a cor da pele, mas também o nome. O parceiro injustiçado se chama Rafael. Cumpriu sua pena, voltou às ruas mas "a justiça criminal é implacável, tiram sua liberdade, família e moral e, mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão pra sempre de ex presidiário." 

Nesse cenário de violência, miséria e, infelizmente, depois de importantes derrotas estratégicas para nosso povo não há, é verdade, com evitar pequenos momentos de vacilos. Os questionamentos são incessantes. Conseguiremos nos organizar? Os milhões de trabalhadores negros conseguirão se unir para garantir a sua existência com dignidade antes de serem exterminados? Conseguiremos, ombro a ombro com os trabalhadores brancos, avançar em nossa consciência e derrubar esse sistema de ódio que nos trata há séculos como párias?
O cansaço enfim chegou. Mas antes de dormir vem à cabeça, mais uma vez, a luta dos jacobinos negros do Haiti, a resistência de Zumbi, Dandara e milhares de outros escravos, os malês, a revolta da chibata, os panteras negras nos EUA, os metalúrgicos negros e suas greves em 80 e os garis do Rio de Janeiro, mais recentemente. Não sou eu contra o Mundo. Somos nós contra o mundo capitalista. O otimismo volta com toda força. "Lava o rosto nas águas sagradas da pia, nada como um dia após o outro dia". 

Rafael Borges