segunda-feira, 11 de julho de 2016

“OS JACOBINOS NEGROS”: 225 ANOS DA REVOLUÇÃO DOS ESCRAVOS NO HAITI

Rafael Borges



Introdução

No próximo mês lembraremos os 225 anos do início da revolta dos escravos da antiga colônia francesa da ilha de São Domingo. Em Agosto de 1791, ainda em pleno calor da Revolução Francesa, centenas de milhares de escravos negros que haviam sido sequestrados de sua terra natal no continente africano se levantaram contra os latifundiários brancos locais e o regime escravagista.
Depois de uma década de resistência e luta contra as expedições militares espanholas, inglesas e francesas, os negros insurretos, dirigidos por Toussaint L´ouverture e seu estado maior, derrotaram as potências colonialistas, a escravidão e estabeleceram o Estado independente do Haiti, produto legítimo da primeira revolução negra vitoriosa da História.
A história do Haiti, mais de dois séculos depois da revolução dos escravos, ainda faz a burguesia branca suar frio e ter pesadelos diante da mínima possibilidade de um levante vitorioso das massas exploradas e oprimidas dos antigos territórios coloniais. A História do Haiti não apenas mostra que as revoluções das classes subalternas são possíveis e necessárias, mas também que podem ser vitoriosas.
Trata-se, então, de uma tarefa estratégica para a burguesia e seus propagandistas racistas “criarem” uma suposta história onde o Haiti, um Estado negro, é o país que “nasceu para dar errado”, o lugar onde a miséria e a violência seriam “naturais”. Um “povo incapaz” de construir sua própria nação.
Em nossos dias, com essa narrativa racista e farsesca, tenta-se criar a ideia de que a “ajuda humanitária” (ocupações militares) por parte das antigas metrópoles colonialistas, os Estados imperialistas da atualidade, que assassinaram os milhões de indígenas que habitavam a ilha, que escravizaram e torturaram milhares de negros e realizaram inúmeras investidas militares e econômicas contra o Haiti independente seria a única alternativa ao “infeliz e desamparado” povo haitiano.

Os jacobinos negros: redescobrindo uma história


 Conhecer, estudar e redescobrir uma História de resistência negra como é a Revolução do Haiti, desconstruindo a narrativa racista, é algo determinante para todos os que nos colocamos nas primeiras fileiras do combate ao racismo no Brasil, nos EUA e na África. A classe trabalhadora brasileira, essencialmente negra, deve conhecer a história de luta dos seus irmãos de raça e classe e tirar as lições estratégicas desse processo. Na tarefa de desbravar essa História cruzada por violência, estupros, dor, mas também por glórias e vitórias, o livro “Os Jacobinos Negros”[1] de CLR James é, sem sombra de dúvidas, uma leitura obrigatória.
Coube a James, dirigente trotskista negro, de forma apaixonante e envolvente, narrar em 323 páginas impregnadas de materialismo histórico dialético a luta dos negros haitianos pela liberdade e independência.

“Essa foi a única revolta de escravos bem sucedida da História, e as dificuldades que tiveram de superar colocam em evidência a magnitude dos interesses envolvidos. A transformação dos escravos, que, mesmo às centenas, tremiam diante de um único homem branco, em um povo capaz de se organizar e derrotar as mais poderosas nações europeias daqueles tempos é um dos grandes épicos da luta revolucionária e uma verdadeira façanha” (p.15)

“Os Jacobinos Negros” foi o resultado de pelo menos seis anos de estudos, alguns meses de pesquisas em arquivos na França e conversas com intelectuais haitianos e africanos. A intenção de CLR James era “não apenas analisar, mas demonstrar, em seu movimento, as forças econômicas da época; a forma como moldam, na sociedade, na política e nos homens, tanto os indivíduos como as massas; a maneira pela qual eles reagem ao meio, em um daqueles raros momentos em que a sociedade está em plena ebulição e, por tanto, fluida”[2].
Não temos nenhuma pretensão em expor aqui todo o conteúdo do livro. Seria uma tarefa impossível. O objetivo dessas breves linhas, onde abusaremos de citações da obra, é tão somente apresentar a contribuição teórica e histórica de CLR James ao público brasileiro, tendo em vista que a primeira edição no país, pela editora Boitempo, é ainda muito recente. O livro também é uma ótima porta de entrada para aqueles que ainda não conhecem as demais contribuições do teórico e revolucionário negro CLR James.       

Da África ao Navio Negreiro: histórias de dor e resistência


A obra de CLR James não poderia começar de outro modo: do relato do sequestro bárbaro de milhões de africanos de suas terras à viagem infernal nos navios negreiros.
Nem Deus ou qualquer outra “entidade superior” os haviam capturados, violados ou escravizados, como ainda prega o lixo ideológico dos setores conservadores que somos obrigados a ouvir em pleno século XXI. Pelo contrário, o tráfico negreiro foi idealizado e executado por homens brancos de “carne e osso” e se tornou indispensável ao desenvolvimento do capitalismo comercial dos séculos XVI e XVII. No século XVIII, a colônia das Índias Ocidentais de São Domingos, com o tráfico negreiro em seu centro, ainda representava dois terços do comércio exterior da França. Esse acúmulo de capital, por sua vez, foi decisivo para o desenvolvimento da indústria:

“Aproximadamente todas as indústrias que se desenvolveram na França durante o século XVIII tiveram sua origem em bens e mercadorias destinadas à costa da Guiné ou à América. O Capital de comércio de escravo as fertilizava; embora a burguesia comercializasse outros produtos além de escravos, tudo o mais dependia do sucesso ou da falência do tráfico” (p.58)

As inúmeras teorias racistas, no campo da religião ou da “ciência”, eram nada mais que justificativas ideológicas para que as potências marítimas pudessem saquear o continente africano e raptar seus povos. O discurso de um continente de misérias e guerras é demolido por James quando explica que “no século XVI, a África Central era um território de paz e as suas civilizações eram felizes”. Contra a falácia de que os europeus estariam ali para salvá-los das inúmeras guerras entre as nações africanas, James também esclarece que “as guerras tribais, das quais os piratas europeus afirmavam libertar as pessoas, eram meros simulacros; uma grande batalha significa meia dúzia de homens mortos.”[3] Não havia um continente a ser salvo de grandes guerras, nem de pestes ou pobreza, mas povos a serem escravizados pela sede dos lucros das metrópoles.
Tribos e nações africanas foram lançadas umas contra as outras. “As tribos tinham de suprir o comércio de escravos, ou então elas mesmas seriam vendidas como escravas.” Após a captura, os escravos “eram amarrados junto uns dos outros em colunas, suportando pesadas pedras de 20 a 25 quilos para evitar as tentativas de fuga; então, marchavam uma longa jornada até o mar, que, algumas vezes, ficava a centenas de quilômetros e, esgotados e doentes caíam para não mais se erguer na selva africana”[4].
Nos navios negreiros, “ao contrário das mentiras que foram espalhadas tão insistentemente sobre a docilidade dos negros, as revoltas nos portos de embarcação e a bordo eram constantes. Por isso, os escravos tinham de ser acorrentados: a mão direita à perna direita, a mão esquerda à perna esquerda, e atrelados em colunas a longas barras de ferro”. Alguns relatos colhidos por James em cartas e documentos citam exemplos como o do capitão de um navio negreiro que durante a viagem “matou uma parte de seus escravos para alimentar com a carne deles a outra parte”, em outro caso, o capitão “para inspirar terror nos escravos, matou um deles e repartiu seu coração, seu fígado e suas entranhas em trezentas partes, obrigando os outros escravos a comê-las, ameaçando aqueles que não o fizessem com o mesmo suplício” [5].
Quando eram levados ao tombadilho do navio, uma vez por dia, “alguns aproveitavam a oportunidade para pular ao mar gritando em triunfo enquanto se afastavam do navio e desapareciam sob a superfície.” O suicídio transformava-se numa arma contra a escravidão.

A Resistência Negra na Colônia de São Domingo


Após a viagem, os escravos eram postos nas docas para serem vendidos. Comprados pelos grandes fazendeiros eram postos imediatamente, na sua grande maioria, em alguma etapa da produção da cana-de-açúcar.
O cotidiano do escravo negro, como sabemos, era de pesados trabalhos e intensos castigos físicos, mas as palavras de James tem o poder de nos levar até àquele momento histórico e nos fazer presenciar tais cenas:

“Mas não havia engenho que o medo ou uma imaginação depravada não pudesse conceber para romper o ânimo dos escravos e satisfazer a luxúria e o ressentimento de seus proprietários e guardiões: ferros nas mãos e nos pés; blocos de madeira, que os escravos tinham de arrastar por onde quer que fossem; máscara de folha de lata, projetada para evitar que eles comessem a cana-de-açúcar, e o colar de ferro. O açoite era interrompido para esfregar um pedaço de madeira em brasa no traseiro da vítima; sal, pimenta, cidra, carvão, aloé e cinzas quentes eram deitadas nas feridas abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e, algumas vezes, as partes pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais eles poderiam se entregar sem custo. Seus senhores derramavam cera quente em seus braços, mãos e ombros; despejavam o caldo fervente da cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos; assavam-no em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma mecha, enterravam-no até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com açúcar para que as moscas os devorassem; amarravam-nos nas proximidades de ninhos de formiga ou de vespas; faziam-nos comer os próprios excrementos, beber a própria urina e lamber a saliva dos outros escravos.”[6]

As mulheres negras, além dos frequentes estupros e de toda violência psicológica, não eram menos poupadas dos duros castigos físicos. As negras grávidas não escapavam do chicote de “quatro postes”. Seus braços e pernas eram amarrados a quatro postes fincados ao chão com um buraco cavado para encaixar a barriga. Assim eram chicoteadas. O Código Negro, que vigorava na Colônia de São Domingos e pretendia “regulamentar” a relação entre senhores e escravos, pretendia “limitar” o número de chibatadas em cinquenta (!). Mas tal legislação jamais foi cumprida e era comum o escravo receber chibatadas até a morte. 
 Mas a narrativa histórica de um escravo negro dócil, que aceita 14 horas diárias de trabalho duro, afastado dos seus familiares e que suporta castigos inimagináveis como os descritos a cima com total passividade e absoluta resignação é nada mais do que uma farsa histórica. Os negros estavam dispostos a fazer tudo o que estava ao seu alcance para sair da condição de escravo. “O suicídio era um hábito comum, e era tal o desprezo que tinham pela existência que, muitas vezes, os escravos tiravam a própria vida não por motivos pessoais, mas apenas para irritar seus donos. Viver era duro e a morte, acreditavam, significava não apenas a libertação, mas a volta à África”[7]
O envenenamento era um meio muito utilizado, pois “um escravo, privado de sua esposa por um dos seus senhores, poderia envenená-lo, e esse era um dos motivos mais frequentes dos envenenamentos”. Mas também, em algumas situações, os escravos envenenavam seus próprios filhos e entes familiares de modo a impedir que passassem pelos sofrimentos descritos.
Os propagandistas da ideia do “escravo dócil” e resignado à escravidão, que aqui no Brasil se escondem atrás do “Mito da Democracia Racial”, frequentemente capturam da história situações excepcionais para mostrar a validade de suas ideias. Mas a História do Haiti, não só durante os anos do processe revolucionário, mas também nas décadas que o precederam, é um tiro mortífero na ideologia racista. O ódio do escravo com sua situação e com seu senhor estava expresso em cada manifestação da vida dos negros.
Mas as ações isoladas, como os envenenamentos, eram limitadas. Era preciso organização e preparação para enfrentar os fazendeiros brancos. Não havia outro momento ou espaço para confraternização que não a religião. Assim, “o Vodu era o meio da conspiração. Apesar de todas as proibições, os escravos viajavam quilômetros para cantar, dançar, praticar os seus ritos e conversar; e então, desde a Revolução, escutar as novidades políticas e traçar os seus planos.”[8]
Contra o mito do escravo dócil, CLR James explica que, mesmo com todas as tentativas dos colonialistas a proibirem, uma canção circulou por 200 anos em todo o Haiti nas reuniões ou cerimônias de Vodu:

“Ê!Ê! Bomba! Heu! Heu!
      Canga, mouné de lé!
        Canga, mouné de lé!
Canga, do Ki la!
   Canga, li![9]

(Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nessa promessa)      

A Revolução dos escravos no Haiti foi precedida de inúmeras formas de resistência. Nunca houve um dia em que um escravo não tentava fugir ou matar seu senhor ou os capatazes. Além das ações individuais nas fazendas e das conspirações nos cultos de Vodu também é preciso destacar que diversos quilombos foram formados ao longo do território da ilha de São Domingo muito antes de 1791. Esses negros quilombolas, já habituados a se organizarem política e militarmente, também vão cumprir um papel decisivo no processo revolucionário.
A revolução também foi precedida de várias rebeliões locais que são verdadeiros ensaios dos combates que viriam mais tarde.  

Conclusão



A Revolução do Haiti, com a revolta dos escravos como eixo central, foi um complexo processo político, social e militar, envolvendo negros, “mestiços” e brancos de diferentes nacionalidades, que está diretamente relacionado aos impactos da Revolução Francesa nas colônias do antigo regime.
A luta pela independência do Haiti, conquistada 20 anos antes da independência do Brasil, não coube aos grandes proprietários de terras, mas sim aos mais de quinhentos mil escravos da colônia. Ao contrário de nosso país, onde o aristocrático processo de independência não levou ao fim da escravidão, o Haiti conquistou sua liberdade em pleno combate aos escravocratas.
Mas a Revolução do Haiti não foi feita somente de explosões locais espontâneas e desorganizadas de escravos contra seus senhores. Para vencer as grandes potências europeias da época, incluindo uma expedição inglesa de mais de 60 mil soldados bem armados e treinados, além dos fazendeiros ricos, os negros haitianos tiveram que se organizar, ter disciplina, fazer alianças, ou seja, se aprofundar na arte da guerra. Coube a Toussaint L´ouverture, e seus generais negros, construir um exército de escravos para libertar o Haiti das amarras do colonialismo e da escravidão.
Há 225 anos da revolução dos escravos no Haiti, quando os negros ainda morrem pelas balas do Estado em todo o continente americano, acreditamos que esse pequeno artigo já cumpriria o seu papel se mais jovens negros se motivassem a ler essa grande obra de CLR James.
Hoje o povo haitiano ainda é agredido pelas potências. Lamentavelmente, os governos petistas, se apoiando no discurso racista de um Haiti incapaz de se desenvolver autonomamente, se prestaram ao odioso papel de “capitão do mato” do capital financeiro e comandam uma ocupação militar que já dura mais de uma década e que até agora não trouxe nada para o Haiti a não ser assassinatos, estupros e epidemias. As tropas da Minustah permanecem no Haiti para garantir a ordem necessária para que as grandes empresas estrangeiras utilizem “em paz” a mão de obra super-explorada do povo haitiano. Conhecer a verdadeira história do Haiti significa inevitavelmente se localizar contra a presença das tropas brasileiras e da ONU nesse país. O Haiti pode ser livre e soberano. Não temos dúvidas que essa tarefa caberá aos trabalhadores haitianos com a solidariedade dos trabalhadores e negros de todo o continente.
Na segunda parte desse artigo iremos destacar os episódios mais importantes da guerra de independência do Haiti, as alianças esporádicas com distintos setores, a difícil e complicada relação entre negros e “mestiços” e o papel de Toussaint L´ouverture na construção do exército negro.  


[1] JAMES, CLR. Os Jacobinos Negros: Toussainte L´Ouverture e a revolução de São Domingo. São Paulo: Boitempo, 2010.
[2] Ibid.,p.16
[3] Ibid.,p.21
[4] Ibid., p.22
[5] Ibid., p.23
[6] Ibid., p.27
[7] Ibid.,p.30
[8] Ibid., p.91
[9] Ibid., p.32

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